Esta lista foi motivada pelo artigo homônimo postado no NY Times alguns dias atrás, e conseguinte discordância com boa parte das escolhas feitas lá. Muita coisa ficou de fora, caso refizesse próxima semana seria uma lista totalmente diferente (ou não). Tem sido um bom século até aqui, pelo menos para o cinema.
Sempre que algum crítico insiste em comparar toda a geração do
mumblecore (como também é conhecido o cinema independente
micro-orçamentário surgido entre Nova York e Chicago no início dos
anos 2000) com John Cassavetes, eu tendo a crer que ele esteja
elegendo o cinema dos Safdies como recorte primordial do “movimento”.
Não é que a urgência, crueza, e por vezes aparente precariedade do
cinema de Cassavetes não se encontre em boa parte dos filmes ditos
mumblecore mas, diferente do processo dele, quase sempre a
espontaneidade delineava todas as etapas do trabalho, e não apenas
servia como um instrumento de criação entre outros. Dos poucos
nomes que não tinham o improviso livre e desimpedido como método,
Andrew Bujalski e os irmãos Safdie foram os primeiros a tentarem se
desgarrar do rótulo, mas Go Get Some Rosemary ainda foi feito à
sombra daqueles ideais. Dramédia que acompanha o fantástico Ronald
Bronstein (outro diretor surgido à época) como um pai “inadequado”
lidando com a presença de seus filhos por duas semanas, todos os
sentimentos parecem ter sido apanhados em pleno ar e servidos na
hora, o que provavelmente é um grande trunfo para quem trabalha
exaustivamente para conseguir uma naturalidade como essa.
Contar um filme não é o mesmo que fazê-lo, diz Jafar Panahi em
dado momento da carta/exercício/protesto que é Isto
Não é Um Filme. Arbitrariamente preso e proibido de fazer filmes
pelas autoridades iranianas, Panahi dribla as obstruções com
inteligente escárnio, utilizando a sala de seu apartamento como
estúdio e “contando” aquele que seria seu próximo projeto
enquanto divaga sobre sua condição, seu cinema, seu país. Se
Kiarostami fabulava sobre os limites da narrativa, sobre a verdade e
a mentira numa história, Panahi vive este pesadelo e cria em cima
dele. Dadas as adversidades encontradas para fazer com que ele fosse
visto (o filme saiu do Irã dentro de um pendrive escondido num
bolo), é ainda mais impressionante notar que Jafar tenha conseguido
fazer mais dois filmes depois deste, e provavelmente (e felizmente)
deve estar planejando um próximo.
Não que isso tenha qualquer relevância, mas Amantes Constantes
foi provavelmente a primeira vez que o cinema de Philippe Garrel
conseguiu sair dos círculos acadêmicos e cair nas graças de um
público mais diversos. As razões para tal conjuntura vão desde a
franca ascensão de seu filho Louis Garrel como muso do cinema
francês, e o súbito crescimento de interesse no tema das revoluções
de 68, causadas pelo provocativo ainda que um tanto vazio, Os
Sonhadores, de Bertolucci, lançado um ano antes e que também era
estrelado pelo Garrel filho. Curiosamente, Amantes era um dos filmes
mais herméticos que Garrel faria nesta fase mais narrativa e menos
experimental de sua carreira, com suas três horas de duração e
olhar meditativo para intricadas relações amorosas -tema preferido
do diretor- e tendo como pano de fundo o antes e depois do maio de 68
ou, mais especificamente, o questionamento do que sobra como
motivação depois que a luta acaba. A fotografia em preto e branco,
bastante granulada e contrastada, os tempos mortos e os diálogos que
viajavam entre o intelectualóide e o completamente banal, renderam
ao filme uma saraivada de vaias em sua participação no Festival de
Cannes. Horrível falar algo assim, mas Cannes provavelmente não
entende Garrel.
Alguma coisa muito curiosa aconteceu no cinema brasileiro em 2007.
João Moreira Salles fez Santiago, Jorge Furtado lançou Saneamento
Básico, Bressane "chocava" a plateia de Brasília com
Cleópatra, Esmir Filho proporcionava o restabelecimento de um
cinema "adolescente" por assim dizer, Coutinho fazia sua
obra prima absoluta com Jogo de Cena, e esses são só alguns nomes.
O fato é que mesmo com todo seu sucesso e expansão ao longo da
última década, tal conjuntura jamais voltou a se repetir nas
paragens do nosso cinema. A melhor memória que tenho desse período
é o assombro de filme que o saudoso Carlos Reichenbach fez em Falsa
Loura. Percebendo a óbvia e mal utilizada conexão estética -e
espiritual- que existe entre o grande melodrama cinematográfico e o
universo da telenovela brasileira, Carlão faz reverências à Moça
com a Valise de Zurlini enquanto retorna aos subúrbios do ABC
Paulista para contar a trágica história de Silmara. Operária,
sonhadora, mulher, a falsa loura que vive às voltas com um universo
muito plástico e urgente, onde tudo aquilo que poderia ser lido como
brega, kitsch, e falso é, na verdade, o mais genuíno, e o
melhor instrumento de fuga de uma realidade opressora. Carlão filma
as ruas, a fábrica, as mulheres, e as desgraças de Silmara com os
olhos de quem vê um grande épico, e não poderia ser de outra
forma.
O horror asiático viu a virada do século trazer uma
impressionante absorção de seus produtos em terras ocidentais,
tomando o caminho natural de uma enxurrada de bons títulos do gênero
serem recriados em versões americanas de gosto duvidoso. Algumas
chegavam a ser interessantes, como O Chamado de Hideo Nakata
recontado por Gore Verbinski, já outras, como por exemplo a
inspirada neste irretocável pesadelo de Kiyoshi Kurosawa passavam
muito longe de qualquer resquício de poder do material original.
Mestre em um tipo de horror que se pode chamar de atmosférico, Pulse
é um dos melhores exemplos do mal estar que um filme de Kurosawa
pode causar. Bom exemplo deste cinema de virada de século em que a
tecnologia tomava tanto o lugar de salvadora da humanidade quanto
causadora de sua irrefreável ruína, a trama acompanha um grupo de
jovens que vivem as voltas com computadores e lidam com o suicídio
de um colega quando eles descobrem a existência de um site que
aparentemente oferece um tipo de contato com o além. Nenhum dos
desdobramentos sobrenaturais é mais devastador que as certezas de
solidão e desespero que vão se abatendo sobre aquelas pessoas; para
Kurosawa o futuro não parecia tão animador.
Existe alguma coisa incomum, difícil de precisar, que permeia todo o cinema de Kelly Reichardt e concede a ele um tom muito característico. Ainda que trate suas personagens com um zelo quase familiar mesmo quando as coloca em situações de limite e desconforto, existe uma linha permanente de tensão, que em nada deve ao mais enervante exemplar de cinema de gênero, e faz com que praticamente todas as suas histórias soem como contos de sobrevivência, em que pessoas agem como acreditam ser necessário para fugir de um fim eminente. A ideia da morte, ou mais essencialmente a ideia do medo, é muito curiosa pois lança atenção sobre tudo aquilo que nos mantêm vivos, logo, o filme de Reichardt a lidar mais diretamente com isso acaba sendo, além de um dos mais efetivamente tensos, o mais existencialista e humanista deles. Acompanhando um grupo de famílias pioneiras que, lideradas pelo pouco confiável Meek, vagam pela Rota do Oregon em busca de um lugar para se estabelecer, Reichardt discute sobre questões que vão desde a complexidade o poder da figura feminina, tema constante de suas histórias, até a formação de certa identidade americana e a qual custo ela foi forjada.
Revisão após revisão a impressão que o filme de Guerín é um
grande Frankenstein de reverências e influências só cresce, e não
há problema nisso, dado o inegável poder que finalmente a visão do
diretor tem para condensar tudo aquilo que lhe inspira. A princípio,
as composições criadas por Guerín e Natasha Braier (fantástica fotógrafa cujos créditos incluem, entre outros, A Teta Assustada, XXY, The Rover, e Demônio de Neon) me remetem bastante ao olhar e à intenção dos irmãos
Lumiére, dado inclusive o grande silêncio que se faz notar em
grande parte de Sylvia, mas há também certo estoicismo bressoniano,
uma perspicaz atenção ao gesto e ao momento que eram tão caras ao
cineasta francês, ou ainda um componente de suspense hitchcockiano,
revelando para o espectador aquilo que seria fatal para os
personagens mas eles ainda não tem plena consciência. A trama em si
é bastante simples: história de um jovem rapaz vagando pelas ruas
de Estrasburgo em busca de uma imagem, o rosto de uma moça que ele
viu anos antes e deseja reencontrar, e a perseguição que ele
empreende ao longo do dia a alguém que se parece bastante com a tal.
Para ainda mais uma citação, essa mais minha que de Guerín, a
maneira como se tratam aqui a ideia de lugar, de habitar e viver um
espaço, preenchendo e sacando dele experiências e memórias afetivas
me remete bastante ao Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense, de Georges
Perec. É, sobretudo, sobre onde estamos e o que estamos fazendo.
Não raro, quando se removem o gesto e a fala de uma observação
da experiência humana o que nos resta é a imagem e, dependendo do
contexto, não ter mais signos adicionando a essa imagem concede um
novo peso a elas. Não se trata de ficarem mais ou menos impactantes,
mas de servirem a uma função em estado puro e pleno. Bloqueio,
pequeno documentário de Sergei Loznitsa sobre o cerco de Leningrado,
nada mais é que uma compilação de imagens registradas à época,
sem entrevistas ou descrições, que desde o início se aproxima mais
de um dito cinema de horror do que de um documentário direto. A vida
daquelas pessoas sob a ameaça constante da guerra, convivendo com
cadáveres empilhados pelas ruas, caminhando apressadas para realizar
suas tarefas, não é remontada, apenas recontada com grande
fidelidade, e só isso já é bastante impressionante.
É revoltante que a batalha travada entre Lonergan e seu estúdio
em torno dos direitos do corte final do filme tenham atrapalhado que
Margaret viesse ao mundo quando e como havia se proposto a isso, e
especialmente trágico que isso tenha tirado o poder de distribuição
do filme. Talvez a maior crônica sobre, além de outras coisas, a
figura do new yorker e da cidade como organismo vivo, Margaret lida
com a relação de crime e castigo que se abate sobre a jovem Lisa
depois de sua participação num acidente de trânsito fatal. Não é
simplesmente um filme sobre culpa, amadurecimento, ou a questão
humana de maneira genérica, mas sobre uma existência completa, em
suas complexidades, e como a troca com o outro é provavelmente a
atividade mais difícil de ser realizada. Filho fiel do teatro,
Lonergan traz de Conte Comigo, sua primeira experiência como
diretor, o mesmo peso e cuidado com as palavras, a mesma criação de
universos infinitos dentro de cada frase, e em especial um cuidado
irretocável com o elenco. Houvesse sido comercializado de forma
honesta, traria para diretor e elenco o que seu mais recente trabalho
conseguiu: merecido sucesso.
É muito ingrata a tarefa de apontar apenas um filmes de Claire Denis num período que compreende títulos como Desejo e Obsessão, O Intruso e Minha Terra África, para citar alguns. Dona de uma filmografia que se mantêm coerente e consistente desde os anos 80, o trato de Denis para com tudo aquilo que está as voltas da violência, do sexualidade, e da incerteza sempre foi certeiro, o que não significa que ela também não esteja apta a trilhar caminhos mais ternos. Pensado como uma homenagem ao cinema de Ozu, mais especificamente ao maravilhoso Pai e Filha, Denis acompanha a vida de um quarteto de personagens, todos franca e belamente desenvolvidos, em sua incomum dinâmica familiar composta de pequenas alegrias e tragédias diárias. A cena em que todos se refugiam da chuva num pequeno bar e o espaço lentamente ganha ares festivos é uma aula de como falar absolutamente tudo que se é necessário para compreender os desejos de um personagem usando muito poucas palavras.
Imagino que seja pelo contato muito particular que suas imagens
tem com o natural em estado bruto; a floresta, o animal, a terra, mas
não raro, o cinema de Apichatpong é descrito como transcendente,
místico, espiritualista, o que me parece um caminho muito diverso do
que o desejado pelo tailandês. O urbano e o material estão tão
presentes nas histórias de Apichatpong quanto toda sua carga
folclórica, mas surgem em notas dissonantes, discutindo e debatendo
aquilo que se coloca na tela de maneira aparentemente simples. A
trinca formada por Síndromes e um Século, Mal dos Trópicos e
Eternamente sua discute isso de maneira muito particular, formando uma espécie de tríptico sobre espaços a serem ocupados e os motivos de
quem os ocupa. O último, em particular, trata a história de amor
entre uma mulher e um imigrante birmanês com quase a mesma
ludicidade disposta numa narrativa bipartida que fazia de Trópicos
um filme tão curioso, mas é bem menos plástico que aquele, nesse
sentido. Ao deixar o universo difícil e burocrático da cidade para
trás em busca de um conforto idílico na floresta, os amantes não
são abandonados pela dureza de suas condições e questões; pelo
contrário, a natureza parece potencializar aquelas dúvidas.
Lucrecia Martel é outro triste (ou feliz, se colocarmos qualidade
e quantidade em perspectiva) caso de realizador que filma muito
pouco, mas por ser absolutamente impecável a cada lançamento a
espera vale a pena. Desde O Pântano, Martel lançou apenas mais dois
filmes, igualmente brilhantes, mas que nunca conseguiram sobrepor a
importância, peso, e genialidade de seu primeiro trabalho.
Intrincado e sufocante mosaico de personagens de uma classe média
argentina que se nega a bater de frente com a própria decadência,
Martel filma uma casa de sítio apinhada de adolescentes insolentes,
matriarcas alcoólatras, e sexualidades reprimidas como um inferno
particular em que a umidade substitui o calor, e fugindo do didatismo
fala com muita propriedade sobre a sociedade Argentina. No mais, é
um dos trabalhos de som mais impressionantes do período; os ruídos
contam uma história em paralelo.
Das questões cinematográficas mais importantes desse século, a
abertura da exploração cinéfila a partir do P2P, download e
streaming é provavelmente uma das mais importantes. Com a liberdade
para explorar qualquer cinematografia disponível na rede, os anos
2000 ofereceram espaço para a descoberta (ou redescoberta) de
experiências narrativas de lugares diversos, e sua consequente
ascensão ao estrelato. Ocorreu com os gregos, com os portugueses,
com os sul-coreanos, mas talvez o mais significativo desses momentos
seja a meteórica chegada do cinema romeno às “altas rodas da
arthouse”. Lançados praticamente no mesmo momento, À Leste de
Bucareste e A Morte do Senhor Lazarescu fizeram todo um mercado
internacional prestar atenção naquele cinema pequeno, sufocante,
desconfortavelmente engraçado, kafkiano em seu olhar desencantado
para a burocracia e dificuldade encontrada em todos os cantos da
sociedade romena e, acima de tudo, profundamente interessado em seus
personagens, jamais condenando-os a uma vida de tragédia, mas
simplesmente observando as questões como elas se colocavam. A
odisseia de Lazarescu em busca de um leito de hospital é um bom
exemplo; é profundamente triste e acha espaço para fazer graça. É
importante saber se levar a sério e saber tomar o caminho contrário
na mesma medida.
As opiniões sobre a ficção científica existencialista (?) de
Jonathan Glazer (baseada em romance de Michael Faber) são
francamente dissidentes. Há quem lhe conceda a pecha de obra-prima,
há quem não veja ali nada mais que um subproduto de discussão
filosófica barata; fato é que quase ninguém atravessa Sob a Pele
indiferente ou sem uma opinião muito pronunciada para oferecer.
Olhando com atenção, talvez a história do ser alienígena que vêm
à terra em missão misteriosa e se percebe impactado pelos
pormenores da raça humana realmente não ofereça reflexão tão
nova ou profunda, mas ser contada com total fidelidade e crença em
sua própria mitologia faz toda a diferença. Esteta de primeira
grandeza, Glazer consegue emular o universo num aparelho de exames
oftalmológicos, e toda a significância da beleza num batom
vermelho. Quando de seu lançamento no Festival de Toronto, Scarlett
Johansson se viu defendendo o filme com unhas e dentes, e ao assistir
sua performance fica muito claro o porquê.
Eu poderia escrever o quanto quisesse sobre este impecável
experimento do saudoso Eduardo Coutinho, mas tudo que é preciso
saber sobre ele está lá, dentro do filme, e em especial na cena em
que Fernanda Torres, perdida na encruzilhada do ser e do interpretar,
interrompe a entrevista algumas vezes até conseguir verbalizar o que lhe
acontece. Às vezes dá pra ver o cinema acontecendo e a sensação é única.
Em teoria, qualquer um dos filmes feitos por Mia Hansen-Løve
entre 2007 e 2016 poderiam figurar nessa lista com igualdade de
láureas, dada sua impressionante consistência como diretora e
roteirista. Apaixonada pelo poder do tempo e encantada pela maneira
como o cinema permite que ele seja manipulado, o temas Mia
invariavelmente giram em torno da observação minuciosa e elíptica
da vida de um personagem ao longo de todas as escolhas certas ou
erradas que ele possa fazer, e talvez o peso dessas escolhas nunca
tenha sido tão investigado quando em Eden. Escrito em parceria com
seu irmão Sven quase como uma biografia da experiência dele
enquanto DJ na efervescente cena de house music da França dos anos
90, a imprevisibilidade da vida dedicada a uma arte que soava
misteriosa à grande parte dos ouvidos e as complexidades das pulsões
e desejos da juventude são talvez os dois maiores nortes do texto,
que atravessa mais de uma década observando atentamente o que pode
estar em jogo quando se luta para manter um projeto de futuro à
qualquer custo.
O uso da citação bíblica que abre Leviathan não se faz
totalmente claro até mais ou menos a metade de sua duração quando
a sensação, algo como presenciar uma espécie de apocalipse em
curso, se torna completamente palpável e definitivamente
aterrorizante. A ideia de um filme sobre pesca comercial soa
relativamente simples -e aborrecida- mas o filme de Castaing e
Paravel foge para paragens tão distantes que nem mesmo os
guarda-chuvas de ‘cinema direto’ e ‘documentário
contemporâneo’ conseguem abarcá-lo completamente. Leviathan
consiste basicamente do registro frio e desconectado do dia a dia num
barco, com toda a brutalidade que pouco ocorre ao se pensar no
universo da pesca, e o contraste da morosidade com que aqueles
marinheiros levam seu ofício com o verdadeiro genocídio que
infligem às espécies marinhas. É praticamente como traduzir em
filme a ideia da morte.
É possível que Hou Hsiao-Hsien já tenha feito filmes melhores
que Millennium Mambo, um consenso nesse aspecto seria muito
improvável, mas é fato que por mais virtuosos que sejam seus
trabalhos, é difícil que algum seja mais humano que este. Concebido
a partir de uma inquietação que o cineasta sentia ao observar a
urgência de uma geração mais nova, distante da sua, e cuja vida
não conhecia a ideia de pausa, de respiro, Millennium, como diz o
título, é um perfeito exemplar de filme da virada do século. Ainda
que já entremos no filme conhecendo o destino de sua protagonista,
existe uma incerteza para com o futuro, filha direta dos anos 90, mas
há também a intensa expectativa sobre o que esse futuro pode
oferecer, e o desejo de que as possibilidades se consumam; é um belo
registro da existência num entrelugar, de estática antes da
movimentação, um mambo dançado vigorosamente. Para além disso, e
mais importante, é um filme de personagem que observa muito
atentamente a vida de Vicky, a relação abusiva vivida com Hao-Hao,
a amizade com o estranho Jack, e as possibilidades que se desvelam
para ela, lenta e delicadamente.
Pensando no complexo processo de verdade/mentira pelo qual passam
personagens e espectadores de Cópia Fiel, cabem, até certo ponto,
as comparações com o Jogo de Cena de Eduardo Coutinho, mas há de
se lembrar que essa fabulação em cima do que é linguagem, do que é
história, do que é narrativa, estava presente no cinema de
Kiarostami desde o assombroso Close-Up. Tour de force (especialmente
de Juliette Binoche) que segue um casal durante um dia e observa eles
se transformarem em outras pessoas, e consequentemente viverem outras
histórias, num piscar de olhos, Cópia é a celebração do ato de imaginar, e consequentemente do ato de existir.
No meio do caminho entre sua aclamada estreia adaptando As Virgens
Suicidas de Jeffrey Eugenides num filme fortemente estilizado e
melancólico -o que se tornaria o norte de seu cinema-, e a
“polêmica” causada pelo olhar que lançou à mítica figura de
Maria Antonieta, transformando a rainha numa figura de inconsequência
análoga àquela dos millenials norte-americanos, Sofia dirigiu um
filme relativamente modesto para os padrões da grande Hollywood, mas
que acabou sendo pivô de certa revolução estética mundo afora.
Encontros e Desencontros trata do fortuito encontro entre um ator
decadente e uma recém-casada jovem no turbilhão que é Tokyo; ambos
americanos fora de seu elemento e sem verdadeiro suporte emocional,
os dois investem os dias conversando sobre a vida, bebendo, e dando
espaço a uma tensão sexual que nada tem de ameaçadora e toma mais
o caminho do fraternal. O fato é que Encontros capitaneou certa
corrente de apreciação à melancolia que, quando da estreia de
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças no ano seguinte,
encontraria um exemplar de absorção ainda mais fácil. Abraçado
por um público jovem sobretudo por conta da artificialidade pop que
emana de cada frame, Encontros e quase toda a obra de Sofia passaram
bastante tempo sendo escanteados e tratados como escapismo efêmero e
não foi até a estreia de Um Lugar Qualquer que ela passou a receber
o respeito e a láurea de autora que sempre mereceu. Talvez hoje em
dia seja o tipo de filme que se repete em cada esquina, mas há pouco
mais de dez anos atrás acompanhar duas vidas ordinárias
reencontrando sua própria beleza era, se não novo, muito raro e
bem-vindo.
Não me lembro de ver, ao menos nos filmes lançados de 2000 para
cá, um cineasta manter uma relação tão estreita entre sua obra e
sua terra quando a que Jia Zhang Ke mantêm com a China.
Invariavelmente interessado em explorar cultura, política e
sociedade de seu lugar, seus recortes costumam variar entre a
tentativa de compreender os impactos causados pela cultura ocidental
(Prazeres Desconhecidos, O Mundo), meditações históricas sobre os
rumos tomados pelo país (Plataforma, As Montanhas Se Separam), ou
simplesmente uma observação da dinâmica entre seus cidadãos vista
ao nível do chão, como é o caso de Em Busca da Vida. Usando a
destruição da cidade de Fengjie, que dará lugar a uma hidrelétrica, como pano de fundo para duas histórias de pessoas
apegadas a um passado que talvez não tenha rendido nenhum fruto e
nenhuma memória, Jia fala sobre finitude, progresso, e como estas
coisas estão interligadas.
Por mais que “James Gray é o cineasta que Paul Thomas Anderson
acredita ser” seja apenas um gracejo que surge volta e meia em
discussões despretensiosas, é perceptível notar qual a gênese da
ideia. Ainda que ambos sejam das raras figuras que lutam para fazer
um cinema mais sóbrio e formal no universo do mainstream norte-americano, Gray recebe certa deferência por ser um cineasta
muito mais fiel ao seu projeto estético, que de certa forma remonta
o melodramático e o clássico a partir de uma pulsão pessoal,
original, e não de reverência a um cinema do passado. Amantes,
talvez seu melhor filme, é um bom exemplo de romance incrivelmente
adulto, duro, virtuoso sem apelos autoconscientes, que olha para a
cidade e comunidade como planos de fundo vivos, e dispõe aquela
miríade de personagens ali, para que existam e desenvolvam seus
amores mal resolvidos. Se não por outra coisa, Gwyneth Paltrow nunca
esteve tão bem.
Para começar, um dado quase irrelevante; quando da sua estreia em
terras recifenses, o filme de Miguel Gomes foi exibido em dois
suportes distintos. Além da cópia em 35mm, um evento que começava
a rarear, o filme teve sessões no finado suporte Rain Digital, uma
das pioneiras desse mercado no Brasil. Pois bem, nas semanas em que o
filme esteve em cartaz eu devo tê-lo revisto entre seis ou sete
vezes variando entre os suportes oferecidos, e o que me marca até
hoje é a total irrelevância disso na experiência final. Agosto,
hoje em dia injustamente ofuscado pelos rumos bem mais ousados e
robustos que Gomes daria à sua carreira de
estrela-do-cinema-arthouse-internacional, é um dos mais complexos
quebra cabeças do recente cinema português, e mundial. Perdido
entre os conceitos de docudrama e docuficção, seja lá o que isso
signifique de fato, o filme acompanha as desventuras de uma produção
cinematográfica no interior do país, mistura sua própria equipe
dentro do processo, cria um outro filme dentro desse, e no meio disso
ainda acha tempo para ser melodramático e bem-humorado,
especialmente no que diz respeito à ironia com os cinemas que se
prestam a explorar o "exotismo" dos menos favorecidos.
E além de tudo tem uma trilha maravilhosa.